Durante tantos anos eu mergulhei pessoalmente e profissionalmente nas palavras de Saramago para escrever as minhas legendas pessoais a cada cena da minha existência diária, no meu filme artesanal que construo ao bordo da trivialidade da minha rotina. Acariciei cada passagem do "Evangelho Segundo Jesus Cristo", sem trocadilho, como se de fato fosse minha bíblia de vida. Ele me ajudou na aproximação com as pessoas e a entendê-las; a me entender, a viver mais de poesia, de prosa, de crença, de gente, de opostos e de transgressão. Mostrou-me que o bom não é necessariamente bom e o mau não é necessariamente mau. Deixou-me saber sobre o diálogo e a força, sim, a força... das marcas! Saramago, com sua palavra mágica me deu a oportunidade à luz.
Algumas informações entram na sua vida para te provocar, catapultar seus pensamentos para lugares até inaceitáveis. São como pedras atiradas de estilingues nunca sabidos e que de repente cruzam o ar e se cravam na sua vida como se sempre se soubessem donas dali. Assim entrou Jose Saramago na minha vida. Sempre me senti um potro selvagem consumidor de informação. Daquelas pessoas que arrasta atrás e dentro de si uma voracidade que nunca se acalma, nunca se sacia.
Um dia essa criatura caiu, trôpega, na narrativa estupefaciente do “Evangelho Segundo Jesus Cristo” e por ali abrigou sua alma entre aquelas palavras como se sempre tivesse sido uma analfabeta e tudo agora, olhando-se aquelas letras juntinhas, se transformasse em luz. Neste mergulho fui ajudada por uma leitura precoce, ainda aos 12 anos, do Velho e Novo Testamento- não, não foi castigo dos pais, foi mesmo a tal vontade de ler tudo que tinha páginas numeradas em uma infância vivida entre quintais e livros escassos. Era como uma estória contada por meus avós e que passou a contrastar com outra versão. E descobri que esta nova versão era a que me capturava.
Estava irremediavelmente seduzida pelo Pastor de Saramago. Ele, um Diabo quase (ou será mais?) justo do que o Deus? A partir daí caminhei com Jesus pelo prazer enquanto ele descrevia os Salmos e as montanhas da Galaad no conforto do leito de Maria de Magdala, imaginando seu umbigo como uma taça de vinho sagrada. Não demorei a me render a um José simplório na sua trajetória de ser o paralelo de um Jesus atormentado por sua humanidade e, ainda que suavemente, questionando porque deveria ser a imagem celebrizada e crucificada nas paredes de milhões de casas, muitos anos depois, naquela que seria, na voz de Deus (voz de Saramago) a maior jogada de “marketing”de todos os tempos?
Como sabemos, marca é sinal na sua estrutura simplória de “figura” e símbolo na sua visão atitudinal e associativa de idéias. Jesus ouvia do diabo e de Deus como seria sua trajetória para virar a marca de uma crença, um símbolo irretocável e estrategicamente planejado para cruzar os séculos e arrebatar fãs como os Rolling Stones em concertos de noites de gala. Suando frio, parecia, nas entrelinhas dos sem pontos parágrafos de Saramago, desejar que o Diabo convencesse Deus a não deixá-lo virar esta marca à base de tanta dor. Pior: aparentemente desnecessária. Mas Deus não aceitou o pacto proposto pelo diabo e assim a história da humanidade católica ganhou sua “marca/símbolo”. Saramago ganhou a fúria da igreja que lhe adiou mas não conseguiu tirar o Nobel. E que, agora,até com humildade recém adquirida, o reconhece como um interlocutor fundamental. De certa forma revive assim o clima do diálogo entre Deus e o Diabo, no livro, onde os dois se reconhecem praticamente a mesma pessoa. Ainda que a vida aponte missões diferentes para cada um.
A de Saramago era nos sacudir - pobres humanos - nos obrigando deliciosamente a achar sentido nas suas frases sem fôlego que não podiam estacionar em pontos parágrafos ou nas idéias elipsadas de seus pontos e vírgulas. Assim fui ganhando visões como a praça com suas crianças retalhadas por soldados romanos e o desespero de Maria defendendo José como um homem bom que apenas tentara salvar seu filho. E, apesar disso, não pôde evitar que a frase do anjo anunciador lhe cortasse a alma como uma lâmina desconcertante na conclusão de que “os pecados dos homens bons não podem ser perdoados”.
Ontem sua inspiração viva se foi. Mas o estilingue está ainda aí, com sua haste ereta, seu elástico tensionado, pronto para soltar uma pedra na direção de seu coração e cravar nele uma palavra como a de Maria de Magdala para Jesus: se eu não puder te seguir, seguirei tua sombra, se nela puder ver os teus olhos.
sábado, 19 de junho de 2010
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